Por que a trajetória de Carolina Maria de Jesus foi reduzida à fome e à miséria? Como sua escrita revela camadas ainda não interpretadas da história do Brasil?
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Carolina Maria de Jesus, a escritora que transformou papel encontrado no lixo em literatura que expôs a fome, a exclusão e a resistência das periferias. |
Carolina Maria de Jesus: A Voz que Rasgou o Silêncio da Favela
Foi numa oficina criativo-literária do escritor Marcelino Freire que soube de Carolina num pedaço de papel. Marcelino trouxe para o final da primeira aula uma caixa de filipetas de papel, como se fosse sortear algo. O sorteio foi distribuir nomes aleatórios para os participantes, que deveriam pesquisar e trazer no dia seguinte o resultado. O meu nome sorteado foi um nomão que quase não coube no papel: Carolina Maria de Jesus.
O Encontro que Mudou Tudo: Audálio Dantas e a Descoberta de Carolina
Carolina Maria de Jesus não foi apenas a autora de Quarto de Despejo. Sua existência extrapola os rótulos de "testemunho da miséria" e "escritora ocasional". Lavradora, contista, romancista, poetisa, sambista, mãe solo, intelectual autodidata – uma mulher que atravessou fronteiras geográficas e literárias, mas que ainda hoje sofre com o apagamento seletivo da sua trajetória.
Criou três filhos na favela do Canindé, onde viveu entre 1947 e 1960. Durante o dia, catava papel e recicláveis para sobreviver, mas, nas horas vagas, produzia arte e registrava a cidade em sua linguagem cortante, que ainda ecoa como um grito silenciado.
Foi descoberta por Audálio Dantas durante uma reportagem na favela do Canindé. Quando levou o jornalista até seu barraco, mostrou cadernos com romances, poesias e memórias. Mas foi seu diário, um testemunho do cotidiano brutal da favela, que despertou interesse comercial.
Carolina, desconfiada como sempre, testou o repórter antes de mostrar seus cadernos. Perguntou se ele queria ver o que escrevia, mas sem entregar de imediato sua obra. Audálio, sem saber se aquilo daria uma boa matéria ou se era apenas uma conversa casual, aceitou.
O que encontrou foi uma mulher negra, favelada, mãe solo de três filhos, catadora de papel e com um olhar cortante sobre o mundo.
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Audálio Dantas Com Carolina Maria de Jesus (à esquerda) e Ruth de Souza, na Favela do Canindé, anos 1960. (Foto: Outras Palavras). FONTE: Instituto Humanitas Unisinos |
Dentro do pequeno barraco, Carolina guardava um verdadeiro tesouro literário: contos, poesias, romances inacabados e memórias registradas com a urgência de quem sabia que escrever era sua única forma de luta. Entre os diversos cadernos, um em particular chamou a atenção de Audálio:
um diário fino, rabiscado sem preocupação estética, mas carregado de força bruta. Ali, ela narrava a rotina da favela, sem filtros, sem floreios, sem a necessidade de agradar.
O jornalista percebeu imediatamente que aquele material era mais do que uma reportagem: era literatura viva, urgente, necessária. Mas convencer o mercado editorial foi outra batalha.
O Caminho Até a Publicação
Levar os escritos de Carolina para publicação foi um processo árduo. Audálio insistiu que o texto dela deveria ser apresentado sem edições exageradas, sem a "limpeza" que muitos queriam fazer para tornar a narrativa mais palatável para a elite intelectual. Durante um ano, ele selecionou os trechos mais impactantes do diário, resistindo às pressões para “corrigir” a linguagem crua e espontânea da autora.
Carolina, por sua vez, oscilava entre o entusiasmo e a desconfiança. Sabia que sua história não era bem recebida por todos. Sua condição de mulher negra e pobre gerava preconceito dentro e fora do mercado literário.
“Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora”.
- Carolina Maria de Jesus,
em Quarto de despejo, 1960
Mas sua vontade de ser publicada era inabalável. Quando Audálio voltou com a notícia de que a Editora Francisco Alves lançaria seu diário como livro, Carolina já havia aprendido a lição: confiaria no repórter, mas manteria um pé atrás com o resto do mundo.
O Sucesso e a Tentativa de Apagamento
Quarto de Despejo foi publicado em 1960 e, em três dias, vendeu 10 mil cópias – um feito raro no Brasil. Traduzido para 14 idiomas e distribuído em 40 países, tornou Carolina um fenômeno editorial, convidada para eventos e entrevistada por jornais dentro e fora do país.
Mas a ascensão veio acompanhada de resistência. Casa de Alvenaria, seu segundo diário, já fora da favela, foi recebido com frieza. Se antes sua escrita servia como testemunho da miséria, agora expunha a hipocrisia da elite que a exaltara apenas enquanto curiosidade exótica. O mercado, ávido por narrativas sobre a pobreza, não se interessou pelo olhar crítico de uma mulher negra sobre o sistema que a mantinha à margem.
A Carolina que Se Recusou a Ser Teleguiada
Disseram que era hora de parar. Carolina ouviu, mas não obedeceu. Publicou por conta própria Pedaços da Fome e Provérbios, mas foi sendo jogada para as sombras do esquecimento. Ironia do tempo: os exemplares originais de Pedaços da Fome, que quase não tiveram circulação na época, hoje se tornaram itens raros, disputados por colecionadores. Carolina morreu em 1977, em Parelheiros, no sítio que conseguiu comprar com a escrita – sua literatura como sobrevivência.
"Não tive a sorte deles que puderam cursar escolas superiores. Era o meu desejo estudar, mas os desejos dos pobres ficam em pretensões. É igual a fumaça que desvanecem no ar." - Em "Casa de Alvenaria", Carolina Maria de Jesus.
O tempo levou Carolina, mas não suas palavras. E então, a partir dos anos 1990, seus manuscritos começaram a ser recuperados. Espalhados em acervos no Brasil e no exterior – do Arquivo Público de Sacramento até a Biblioteca do Congresso em Washington –, seus escritos continuam emergindo como um quebra-cabeça que se recusa a ser concluído.
Poética de residuos e ancestralidade
Poética de residuos e ancestralidade
Carolina Maria de Jesus continua sendo um dos nomes mais estudados da literatura brasileira, com pesquisadores revisitando sua obra sob novos ângulos. Segundo a historiadora Elena Pajaro Peres, Carolina foi mais do que escritora: foi sambista, compositora, atriz circense e poetisa. Sua produção inédita, composta por mais de 5 mil páginas manuscritas, revela uma escritora que transitava entre diferentes gêneros, incluindo crônicas, fábulas, autobiografias, peças de teatro e marchinhas de Carnaval. O vasto acervo, disperso em diferentes locais, ainda hoje é alvo de novas descobertas, demonstrando a riqueza e a complexidade de sua trajetória.
A relação de Carolina com a diáspora africana é um aspecto central de seu trabalho. De acordo com a pesquisa de Elena Pajaro Peres, suas referências culturais vão além da literatura brasileira e dialogam com tradições afrodescendentes. Seu avô, um ex-escravo de origem banto, influenciou sua formação moral por meio de provérbios e narrativas orais, estabelecendo paralelos com culturas como a de Cabinda, em Angola. Além disso, sua obra se aproxima do spirituals afro-americano, que, como os provérbios, transmite valores éticos e políticos. Essas conexões sugerem que Carolina incorporava na escrita uma visão de mundo enraizada em sua ancestralidade africana.
Apesar do sucesso inicial de Quarto de Despejo, a crítica frequentemente restringia Carolina ao rótulo de "testemunha da favela", ignorando sua capacidade literária. Segundo a doutoranda Raffaella Fernandez, sua escrita vai além do relato social e se estrutura em uma "poética de resíduos", mesclando gêneros e registros diversos, como o romance romântico, textos jornalísticos e sambas. Sua produção revela um uso sofisticado da linguagem, com trechos de grande refinamento poético, desafiando a ideia de que sua literatura era apenas documental.
Outro aspecto pouco discutido é a presença de Carolina em redes transnacionais. Seu contato com intelectuais e editoras estrangeiras permitiu a publicação de Diário de Bitita primeiro na França, antes de ser lançado no Brasil. Suas obras foram traduzidas para 14 idiomas, e microfilmes de seus manuscritos encontram-se na Biblioteca do Congresso, em Washington. Contudo, mesmo no exterior, a recepção de sua obra ainda está muito vinculada ao aspecto testemunhal, sem o devido reconhecimento de sua dimensão literária.
A trajetória de Carolina ilustra como a história da literatura muitas vezes invisibiliza certas vozes. De acordo com Elena Pajaro Peres, sua escrita não pode ser limitada à ideia de "literatura marginal" ou de periferia. Ela se insere em uma tradição de escritores que transitam entre diferentes esferas culturais e sociais, desafiando as barreiras impostas pelo cânone literário. Sua obra continua sendo redescoberta e estudada, e seu nome permanece um símbolo de resistência, denúncia e reinvenção da literatura brasileira.
Carolina aos Olhos da Filha: Uma História que nem o Tempo Apaga
Relato de Vera Eunice de Jesus Lima, professora e filha de Carolina
Minha mãe nasceu pobre e nasceu diferente. Inteligente demais para caber no mundo pequeno onde nasceu, lá em Sacramento. Lia tudo, desde menina. Estudou só até o segundo ano primário, mas praticamente aprendeu sozinha. Era assim: pegava papel, pegava livro, pegava qualquer coisa com letra e fazia daquilo a vida dela.
Gostava de baile, de carnaval, de dançar. E gostava de cantar também. Mas nos bailes, ninguém queria dançar com ela. Talvez porque fosse diferente, talvez porque não engolia silêncio. Certa vez, num desses lugares, sumiu um dinheiro e jogaram a culpa nela. Foi presa. Apanhou. Bateram nela, bateram na mãe. Quando encontraram o dinheiro, soltaram as duas. Mas alguma coisa quebrou ali dentro. Ela me dizia que naquela hora, deitada no chão, pediu a morte.
Mas a morte não veio. Veio a coragem. E Carolina decidiu que daquele lugar ela não ficava mais. Chamou a mãe, quis partir. Mas a mãe ficou. Então ela veio sozinha. A pé.
Quando chegou em São Paulo, arrumou trabalho na casa do Dr. Zerbini. Ele dizia que nos finais de semana ela podia sair, passear, ter folga. Mas Carolina não queria folga. Queria a biblioteca. Queria ler, ler, ler. E lia tudo.
Namorou muito. Não escolhia um só lugar do mundo pra amar. Namorou chileno, americano, inglês. Mas o primeiro filho veio de um português. Meu irmão. Quando engravidou, não pôde mais trabalhar em casa de família.
E aí? E aí foi pra rua.
E foi bem nessa época que um político importante ia chegar em São Paulo. Não sei se era o Lucas Nogueira Garcez, não sei se já era o governador, só sei que quando ele veio, fizeram a limpeza. Juntaram os pobres, os que dormiam onde podiam, encheram um caminhão e despejaram tudo na favela do Canindé. Foi assim que minha mãe foi parar lá. Foi assim que Quarto de Despejo nasceu.
Na favela, a gente nunca sabia quando ia comer. Se almoçava, não jantava. Se jantava, não almoçava. Mas minha mãe escrevia. Escrevia quando tinha comida em casa. Só escrevia se tinha paz. Se a barriga roncava, a caneta ficava muda.
Passou fome, mas nunca deixou de estudar. Pegava da própria boca pra pagar aula de reforço pra mim. Matemática era um pesadelo, mas ela fazia questão. Dinheiro pra condução, sempre tinha. Comida, nem sempre. Mas escola, nunca deixava de lado.
E o maior sonho dela? O maior sonho dela era que eu fosse professora.
Minha mãe nasceu pobre e nasceu diferente. Inteligente demais para caber no mundo pequeno onde nasceu, lá em Sacramento. Lia tudo, desde menina. Estudou só até o segundo ano primário, mas praticamente aprendeu sozinha. Era assim: pegava papel, pegava livro, pegava qualquer coisa com letra e fazia daquilo a vida dela.
Gostava de baile, de carnaval, de dançar. E gostava de cantar também. Mas nos bailes, ninguém queria dançar com ela. Talvez porque fosse diferente, talvez porque não engolia silêncio. Certa vez, num desses lugares, sumiu um dinheiro e jogaram a culpa nela. Foi presa. Apanhou. Bateram nela, bateram na mãe. Quando encontraram o dinheiro, soltaram as duas. Mas alguma coisa quebrou ali dentro. Ela me dizia que naquela hora, deitada no chão, pediu a morte.
Mas a morte não veio. Veio a coragem. E Carolina decidiu que daquele lugar ela não ficava mais. Chamou a mãe, quis partir. Mas a mãe ficou. Então ela veio sozinha. A pé.
Quando chegou em São Paulo, arrumou trabalho na casa do Dr. Zerbini. Ele dizia que nos finais de semana ela podia sair, passear, ter folga. Mas Carolina não queria folga. Queria a biblioteca. Queria ler, ler, ler. E lia tudo.
Namorou muito. Não escolhia um só lugar do mundo pra amar. Namorou chileno, americano, inglês. Mas o primeiro filho veio de um português. Meu irmão. Quando engravidou, não pôde mais trabalhar em casa de família.
E aí? E aí foi pra rua.
E foi bem nessa época que um político importante ia chegar em São Paulo. Não sei se era o Lucas Nogueira Garcez, não sei se já era o governador, só sei que quando ele veio, fizeram a limpeza. Juntaram os pobres, os que dormiam onde podiam, encheram um caminhão e despejaram tudo na favela do Canindé. Foi assim que minha mãe foi parar lá. Foi assim que Quarto de Despejo nasceu.
Na favela, a gente nunca sabia quando ia comer. Se almoçava, não jantava. Se jantava, não almoçava. Mas minha mãe escrevia. Escrevia quando tinha comida em casa. Só escrevia se tinha paz. Se a barriga roncava, a caneta ficava muda.
Passou fome, mas nunca deixou de estudar. Pegava da própria boca pra pagar aula de reforço pra mim. Matemática era um pesadelo, mas ela fazia questão. Dinheiro pra condução, sempre tinha. Comida, nem sempre. Mas escola, nunca deixava de lado.
E o maior sonho dela? O maior sonho dela era que eu fosse professora.
A História que Ainda Não Foi Contada
A recuperação de Carolina ainda é fragmentada. O Brasil, que a celebrou pelo testemunho da fome, hesita em reconhecê-la como intelectual. Durante décadas, sua escrita foi lida sob a ótica da precariedade, como se fosse um fenômeno milagroso que escapou da favela por acaso.
Mas seu legado está longe de ser um acidente. Antes da favela, houve Sacramento. E antes do Canindé, houve um universo de influências que moldaram sua escrita.
O que sua trajetória revela é que Carolina não nasceu da carência. Sua literatura não é um acaso, mas o resultado de uma trajetória intelectual que foi sistematicamente ignorada.
O que ainda falta reconhecer?
Seus manuscritos ainda estão sendo descobertos. Sua escrita ainda está sendo resgatada. E sua influência segue reverberando na literatura periférica, na literatura marginal, nos saraus, nos slams. Carolina não foi apenas uma precursora – foi um marco.
A pergunta que resta é: por que o Brasil ainda resiste em dar a ela o lugar que lhe pertence?
Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira que, apesar de enfrentar adversidades como pobreza e racismo, deixou um legado significativo na literatura nacional.
A seguir, apresentamos uma lista de suas obras publicadas, documentários e filmes sobre sua vida, músicas compostas por ela e referências que destacam sua importância:
Livros Publicados:
- Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960)
- Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada (1961)
- Pedaços de Fome (1963)
- Provérbios (1963)
- Diário de Bitita (1982, póstumo)
- Meu Estranho Diário (1996, póstumo)
- Antologia Pessoal (1996, póstumo)
- Onde Estaes Felicidade? (2014, póstumo)
Documentários e Filmes:
- Favela: a vida na pobreza (1961) – Documentário que aborda a vida nas favelas, incluindo a história de Carolina.
- Carolina (2003) – Documentário dirigido por Jeferson De, que retrata a vida e obra da escritora.
- Quarto de Despejo (2007) – Adaptação cinematográfica baseada no livro homônimo.
Músicas e Marchinhas:
Carolina também se aventurou na música, compondo algumas canções e marchinhas de carnaval. Embora menos conhecidas, essas composições refletem sua versatilidade artística.
Outras Obras:
Além de seus livros e músicas, Carolina escreveu peças de teatro, poemas e contos, muitos dos quais permanecem inéditos ou foram publicados postumamente.
Referências Nacionais e Internacionais:
O livro Quarto de Despejo foi traduzido para 14 idiomas e distribuído em 40 países, destacando-se como uma importante obra da literatura mundial.
Carolina é frequentemente citada em estudos acadêmicos sobre literatura marginal, desigualdade social e racismo.
Em 2019, no 105º aniversário de seu nascimento, foi homenageada com um Doodle pelo Google, reconhecendo sua contribuição para a literatura e a sociedade.
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Em 14 de março de 2019, o Google homenageou Carolina Maria de Jesus com um Doodle em celebração ao seu 105º aniversário. A ilustração destaca a escritora e sua obra, reforçando seu legado na literatura brasileira e mundial. |
A obra de Carolina Maria de Jesus continua a inspirar e a ser objeto de estudo, evidenciando sua relevância duradoura na cultura brasileira e mundial.
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