Como a Lira Paulistana virou personagem da própria história
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A icônica Porta de Aço da Lira Paulistana, marcada pelo tempo e pelas homenagens ao lendário teatro que revolucionou a cena musical independente de São Paulo. |
No início, ainda novo, brilhava discreto na entrada do Teatro Lira Paulistana, um pequeno porão debaixo de uma loja de sapatos, onde se entrava sem pompa, mas se saía transformado.
Foi numa dessas noites que ele ouviu Fernando Alexandre, Wagner Garcia e Luiz Tati, os fundadores da casa, decidirem que ali, sob suas dobradiças de metal, São Paulo ganharia seu próprio palco de resistência cultural.
Era uma noite de 1979. O vento frio batia nas esquinas da Praça Benedito Calixto, e ele, firme, resistia. P.D.A. era seu nome. Ou melhor, sua sigla. Porta de Aço, um espectador mudo, um guardião de histórias.
Enquanto os bares da região serviam seus últimos copos, a Lira Paulistana acordava. Os primeiros acordes ecoavam pelo porão apertado e úmido. P.D.A. ouvia tudo. Ele sentia. Itamar Assumpção passava, carregando o groove nos ombros, acompanhado da Banda Isca de Polícia, uma trupe de músicos que tocavam como se estivessem derrubando muros. Ali dentro, samba, funk, dodecafonismo e atonalidade eram um só corpo sonoro.
No outro dia, o Grupo Rumo enchia o pequeno palco. Vozes atravessavam o espaço como ecos de uma São Paulo boêmia, irônicas e líricas, com letras que desconstruíam o jeito de cantar e contar histórias.
P.D.A. viu Premeditando o Breque (Premê) misturar sarcasmo e brasilidade, e Arrigo Barnabé, dodecafônico e tropicalista, transformar o porão num laboratório sonoro de experimentação. Quando Tetê Espíndola soltava sua voz aguda e cortante, o espaço vibrava, e o Porta de Aço sentia o metal tremer de emoção.
Mas não era só a música que fazia P.D.A. estremecer. O teatro pulsava forte. Ele viu Carlos Careqa desafiar estéticas, Tião Carvalho levar o tambor de crioula maranhense para o coração da metrópole, e André Abujamra, com seu grupo Os Mulheres Negras, reinventar a MPB com guitarras futuristas e percussão nonsense.
Entre risos e resistência
A Lira não era apenas um teatro. Era um estado de espírito. P.D.A. viu as ironias afiadas do Língua de Trapo ganharem forma em canções de humor e denúncia, enquanto Walter Franco transformava poesia concreta em caos organizado. Patife Band fazia o porão vibrar com distorções elétricas e aquilo que os críticos chamariam depois de punk jazz.
P.D.A. testemunhou noites em que Eduardo Gudin embalava o público com seu violão refinado. Ouviu Zé Miguel Wisnik transformar filosofia e literatura em música e Jorge Mautner incendiar a plateia com seu violino anárquico. A Barca do Sol desenhava melodias como um mapa sonoro das esquinas de São Paulo.
E P.D.A. sabia que aquelas noites eram coisas únicas, irrepetíveis. Quem ali entrava, não saía ileso.
O dia em que P.D.A. quase não abriu
Houve um dia em que quase não abriram a Lira. P.D.A. ficou trancado, resistindo às mudanças da cidade. A polícia tinha passado por ali, fechando bares e ameaçando levar a cultura alternativa junto. Naquele dia, Itamar Assumpção espiou a porta de aço e soltou:
— "Vão tentar calar a gente? Quero ver calar a Isca de Polícia."
No fim da noite, as dobradiças gemeram e P.D.A. se abriu de novo, como quem ri da repressão.
Referências
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