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A Barra ficou Profunda Mente Elitista: O Samba, a História e a Resistência da Barra Funda

O bairro que se fez samba e cultura agora luta contra a maré da especulação imobiliária e o apagamento de sua história.


Da antiga fazenda às rodas de samba, dos imigrantes aos arranhões-céus, a Barra Funda é palco de uma saga que mistura raízes, resistência e gentrificação.

A história da Barra Funda, bairro de São Paulo, é uma epopeia de resistência e transformação, onde o passado e o presente se entrelaçam em uma dança contínua.

Referenciando a reportagem de Rodrigo Bertolotto e Camila Svenson, publicada pelo TAB, é possível entrar nos labirintos dessa região marcados pela imigração, pelo samba e pela luta contra o desligamento e a especulação imobiliária.

A Fazenda e a Primeira Ocupação


A Barra Funda de hoje nasceu como uma vasta chácara, uma extensão de mato e água, onde a natureza se apresenta em estado quase selvagem. No século XIX, uma região era cenário de lagoas e terras alagadiças, um espaço vasto e inóspito à espera de desbravadores.

Foi nesse contexto que os primeiros a chegar foram os imigrantes italianos e os negros recém-libertos da escravidão. Em um terreno onde o rio Tietê se encontrava com os sonhos de quem buscava um novo lar, italianos como o avô de Querinto Pieroccini chegaram e fizeram das várzeas seu sustento. “A gente caçava rã pra comer”, recorda Querinto, 93 anos, testemunha viva dessa história.

A partir de 1886, italianos vindos de diferentes regiões, como Luca, na Toscana, e Nápoles, construíram os seus lares e estabeleceram as suas atividades, muitas vezes relacionadas com a agricultura e ao comércio de alimentos. Entre eles, cirurgiões carpinteiros e serralheiros que trabalhavam para os barões do café nos casais vizinhos dos Campos Elíseos, revelando uma força de trabalho que contribuía para o desenvolvimento do bairro.

Paralelamente, os negros recém-libertos encontraram na Barra Funda um refúgio, um lugar onde poderiam iniciar uma nova vida, ainda que sob condições precárias. Nos porões dos cortiços, abrigavam-se aqueles que vinham das fazendas do interior, marcados pela experiência da escravidão e movidos pela busca pela liberdade. Os italianos, que ergueram casas para alugar, reservaram os porões para os negros, criando um ambiente de convivência e intercâmbio cultural, embora permeado por tensão social.

O Berço do Samba e a Resistência Negra


Foi nesse terreno fértil de diversidade cultural que o samba paulistano encontrou seu primeiro lar. No Largo da Banana, ao lado das estações de trem, a população negra se reúne, e todos, ao som dos tambores, chocalhos e cavaquinhos, as primeiras batidas do samba ecoaram. O samba de São Paulo nasceu no meio do cotidiano da Barra Funda, entre as rodas de samba, as festas e as celebrações que reverberavam a cultura afro-brasileira.

O samba nascia nos porões, sob os tetos baixos, onde os sambistas se agachavam para escapar das leis que os criminalizavam.

 "Naquela época, a polícia chegava enquadrando com a tal lei da vadiagem. A gente corria pelos trilhos e se perdia entre as linhas para não ir preso", lembra Antonio Pereira da Silva Neto, o Zulu, um dos guardiões da memória do bairro. Zulu, 74 anos, sambista da velha guarda, viveu uma vida inteira na Barra Funda e é um dos nomes que carregam as notas do Carnaval paulistano.

Foi também na Barra Funda que nasceu o primeiro grupo organizado de samba no Carnaval de São Paulo. O Cordão da Barra Funda, fundado em 1914, se transformou no GRESM Camisa Verde e Branco, que mantém até hoje a chama do samba acesa. A batida tinha começado no século anterior no Largo da Banana, onde os negros, depois do expediente, tocavam e dançavam em uma explosão de alegria e resistência.

Os Trilhos, a Indústria e a Urbanização


Os trilhos da ferrovia, que cortavam a Barra Funda, trouxeram não só a industrialização, mas também uma nova leva de transformações. As ferrovias, como a Sorocabana e a São Paulo Railway, foram construídas em grande parte por mãos escravizadas e se tornaram vias de acesso para levas de negros vindos das plantações do interior. Muitos empregos encontraram na própria Barra Funda, carregando e descarregando vagões, e a região se consolidou como um enclave operário.


Antiga Casa das Caldeiras, na Barra Funda

As indústrias se ergueram nas barreiras desprezadas, com galpões e fábricas, como a emblemática dos Matarazzo, dando origem a um bairro fabril. Ao longo das linhas férreas, as casas operárias cresceram, formando vilas de trabalhadores. A classe operária se misturava às margens do rio, aos cortiços e às vilas de ferrovias, compondo um cenário urbano complexo e diverso.


As casas dos trilhos ainda são testemunhos dessa época, abrigando memórias de um tempo em que a vida na Barra Funda girava em torno do trabalho e da solidariedade comunitária.

Antiga estação de trem da Barra Funda nos anos 50, capturando um momento em que os trilhos ainda carregavam a história viva do bairro. Foto de Marcello Talamo


Contudo, a urbanização trouxe consigo um processo de segregação e higienização. No final do século XIX, a cidade de São Paulo passou por uma série de reformas urbanas que empurraram os pobres e os negros para longe do centro, redefinindo as paisagens sociais.

A especulação imobiliária chegou à Barra Funda na década de 1940, com a expansão do Pacaembu, forçando muitos de seus moradores para bairros periféricos, como Casa Verde, Limão e Parque Peruche.

Marcos Culturais e o Legado Negro


Apesar das transformações, a Barra Funda se firmou como um epicentro cultural. A Casa Mário de Andrade, residência do escritor modernista que sintetizou em sua obra a cultura nacional, é um marco de resistência literária e artística.

Embora Mário de Andrade tenha pouco escrito sobre o bairro em que viveu metade de sua vida, a Casa tornou-se um centro de memória, um espaço que preserva o legado modernista e a luta pela identidade cultural.

Outros marcos culturais, como o Memorial da América Latina, projetado por Oscar Niemeyer, e o Theatro São Pedro, reforçam a vocação da Barra Funda como um território de arte e cultura.

Nas tardes do Parque da Água Branca e nas noites do Sesc Pompeia, a vida pulsa em eventos e encontros que ecoam a diversidade e a história do bairro.

A Igreja de Santo Antônio da Barra Funda e a Igreja de São Geraldo das Perdizes são testemunhos da religiosidade que permeia o bairro, enquanto o Cine Santa Cecília, embora hoje em desuso, remete a um tempo em que o cinema era um dos principais lazeres da comunidade.

A presença negra, que marcou profundamente a história da Barra Funda, ainda pode ser sentida em cada esquina, em cada roda de samba e em cada campo de futebol de várzea. O legado negro do bairro é indissociável de sua identidade, refletido nas festas, nas tradições e nas resistências cotidianas.

Apesar das tentativas de desligamento e da pressão da gentrificação, a memória afro-brasileira permanece viva na Barra Funda.

A Contribuição com a Cultura Brasileira


Na década de 1920, a Barra Funda se tornou um ícone cultural, entrando para a história da música paulistana e nacional como um dos berços do samba.

O Largo da Banana, mais do que um mercado ao lado das estações de trem, foi o ponto de encontro para sambas de roda, rodas de tiririca (capoeira) e serestas. Era ali que a cultura popular fervilhava, ecoando as batidas e os cantos dos que faziam o samba sua voz e expressão.

O Largo é lembrado em versos de sambas icônicos, como os entoados de Geraldo Filme, um dos maiores cronistas do cotidiano negro paulistano. Essas informações destacam o papel fundamental da Barra Funda no cenário cultural brasileiro, conforme registrado por Abrahão de Oliveira no site São Paulo In Foco.

Foi na Barra Funda que Dionísio Barbosa fundou o primeiro cordão carnavalesco paulista, o Grupo Carnavalesco Barra Funda. Esse grupo nasceu da necessidade de dar voz àqueles que se sentiam excluídos da Festa do Momo.

Dionísio Barbosa

A presença dos cordões de carnaval consolidou a Barra Funda como um centro de resistência cultural e de luta por inclusão. Mesmo diante de obstáculos políticos nos anos 1940, que levaram à interrupção das festividades, a essência do samba e da cultura popular persistiu.

Dionísio Barbosa foi um nome que ressoou pelas ruas do bairro, mas foi Inocêncio Tobias que deu nova vida ao cordão, reorganizando-o sob o nome de Camisa Verde.

Contudo, nem mesmo o carnaval escapou das perseguições políticas da Era Vargas. A Camisa Verde foi equivocadamente associada ao Partido Integralista, o que resultou em uma repressão violenta. Somente em 1954, durante as comemorações do IV Centenário de São Paulo, o grupo conseguiu se desfilar novamente, agora sob o nome definitivo de GRESM Camisa Verde e Branco, marcando seu lugar na história do carnaval paulistano.

Nos anos 1970, a Barra Funda recebeu uma nova onda migratória com a chegada dos nordestinos. Porém, uma época era de crise para os setores da região, que sofreram um processo de decadência, levando a uma mudança no perfil do bairro. A transformação industrial abriu espaço para uma ocupação residencial, alterando a paisagem urbana e econômica da Barra Funda. No início dos anos 1980, o setor industrial praticamente se extinguiu na região, dando lugar a um bairro que tentou se reinventar.

A mudança mais significativa ocorreu em 1989, quando foi inaugurado o Terminal Barra Funda. O novo terminal conectou metrô, trens de passageiros das antigas linhas Sorocabana e Santos-Jundiaí, ônibus municipais e intermunicipais, unindo a Barra Funda ao restante da cidade e consolidando-a como um importante eixo de transporte e circulação. No mesmo ano, o antigo Largo da Banana ganhou um novo marco: o Memorial da América Latina, projetado por Oscar Niemeyer. A obra monumental trouxe nova vida ao bairro, transformando a área em um ponto de referência cultural.

Essa revitalização atraiu investimentos e novos empreendimentos. Muitas casas tradicionais deram lugar a estabelecimentos comerciais, enquanto prédios de negócios se instalavam. Imóveis antigos foram restaurados, e o bairro surgiu o Parque Industrial Thomas Edison e o Centro Empresarial Água Branca em 2001. Em 1995, a Rede Record se distribuiu na região, solidificando ainda mais a transformação da Barra Funda em um importante polo comercial e midiático.

No entanto, essas mudanças trouxeram consigo o risco de apagamento da história e da identidade da Barra Funda. A gentrificação e a especulação imobiliária ameaçam a memória do bairro, transformando seu cenário e seu espírito. Enquanto novos prédios e condomínios se erguem, a memória das rodas de samba, dos cordões carnavalescos e das lutas populares resiste, ainda ecoando nas ruas, nos becos e nos corações daqueles que mantêm viva a alma da Barra Funda.

Toda essa contribuição cultural da Barra Funda, especialmente como referência para o samba paulistano e a cultura negra, encontra-se documentada em fontes como o trabalho de Abrahão de Oliveira, conforme publicado no site São Paulo In Foco, que destaca a rica história da região e os desafios que ela enfrenta em sua luta pela preservação e reconhecimento.

O Início do Apagamento: Gentrificação e Mercado Imobiliário


Porém, como em uma dança de tragédia, o bairro foi alvo de especulação imobiliária. A Barra Funda, com suas ruas e casas de história, começou a se transformar.

Nos últimos anos, a região tem sido alvo de um processo intenso de gentrificação. Como relata a reportagem de Bertolotto e Svenson, a parte baixa do bairro, próxima aos trilhos, tornou-se o foco do mercado imobiliário, que vê na área horizontal e relativamente próximo ao centro uma oportunidade de empilhar unidades para casais e famílias.

Os arranha-céus e condomínios fechados vieram a substituir os cortiços e as antigas casas operárias, trazendo consigo um novo perfil de moradores, muitas vezes alheios à história e à cultura local.

Os cortiços, como os despejados para a ampliação da Casa Mário de Andrade, desapareceram em nome de projetos de modernização. O escritor modernista, que pouco escreveu sobre o bairro, tornou-se, ironicamente, um símbolo do processo de gentrificação que desaloja os antigos moradores.

Em 2022, no centenário da Semana de Arte Moderna, o centro dedicado a ele recebeu palavra para ser ampliado, e as famílias que moravam nos sobrados ao lado, originalmente pertencentes à família de Mário, foram despejadas.

Alguns pretendiam resistir, retornando e ocupando o local, mas foram afastados pela força policial e pelos tapumes que cercam a nova obra.

Os galpões industriais deram lugar a ateliês de arte e galerias, enquanto os bares e restaurantes se tornaram pontos de encontro de uma nova geração de “barrafunders”.

Bistrôs, lojas conceito e padarias veganas surgiram onde antes havia escritórios e pequenas fábricas. A Barra Funda, que um dia fora berço do samba e da cultura popular, agora se vê diante do risco de se tornar apenas mais um cenário gentrificado na cidade.

A Resistência em Meio à Mudança


Apesar da força avassaladora do mercado imobiliário, a Barra Funda ainda resiste. Nas esquinas, os sambistas como Zulu mantêm viva a memória do bairro. "A Barra Funda vai acabar. O que está subindo de torre é uma festa.

Os caras ainda querem chamar aqui de Nova Higienópolis. Pode isso?", questiona ele, em uma luta constante contra a homogeneização que ameaça apagar a identidade da região.

Os moradores antigos, como Querinto e Bonitão, ainda contam suas histórias, resistindo às enchentes e às mudanças. As rodas de samba, mesmo que escassas, ainda se encontram nos quintais e nos bares que sobreviveram ao avanço das construções.

No Parque da Barra Funda, os jogos de futebol de várzea permaneceram como um símbolo de resistência, um grito de pertencimento em um bairro que se nega a desaparecer.

Um Bairro Entre a Memória e o Futuro


A Barra Funda é um bairro que vive em uma tensão constante entre a memória e o futuro. Ela é uma terra marcada pelas batidas do samba, pelas vozes dos imigrantes, pelos trilhos e fábricas que definem sua identidade. 

É um território onde a história se encontra com a modernidade, onde a cultura popular luta contra o apagamento e a gentrificação.

Hoje, ao caminhar por suas ruas, é possível sentir o pulso de uma história profunda, marcada por resistências e transformações.

O bairro que se fez samba, que se fez cultura e indústria, agora se encontra diante de um dilema: manter sua identidade ou se render ao avanço do concreto e do capital.

Na fachada dos novos prédios de alto padrão, as fileiras de palmeiras contrastam com o entorno industrial e com a memória das rodas de samba. Os novos habitantes da várzea, em seus condomínios fechados, muitas vezes desconhecem a história profunda do bairro que agora chamam de lar.

Mas a Barra Funda, com sua história de resistência e transformação, não se cala. Ela persiste como uma voz crítica na cidade, lembrando a todos que por ali passam que a cultura e a memória não podem ser apagadas tão facilmente.

Em cada esquina, em cada porão, em cada campo de futebol, a Barra Funda ecoa uma mensagem de resistência.

Ela é um bairro que se nega a desaparecer, que se recusa a ser apenas mais um pedaço da cidade.

Ela é, e sempre será, na Barra Profunda de São Paulo.

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FONTES:

https://tab.uol.com.br/edicao/barra-funda/#cover

https://casadascaldeiras.com.br/

https://www.saopauloinfoco.com.br/barra-funda/

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/hb_barra_funda_1285344976.pdf


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