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Os galpões da Ciência na Rua Guaicurus – Memória à prova de cinzas

Dizem que na Guaicurus já se produziu tecido. Depois veio o fogo.


Depois, o governo. Depois, a ciência. E no intervalo entre esses "depois", ficou o concreto com cheiro de carvão, esperando alguém lembrar que ali também já teve vida que costurava o tempo, não só pano.

Na dobra esquecida da Lapa, quase entre a respiração ofegante dos ônibus e o suspiro enferrujado dos trilhos, estão os galpões da Estação Ciência – ou o que restou deles, depois da História ter passado com pressa, tropeçado no fogo de 1936 e derrubado a memória de um barracão operário que tecia futuro.

Construídos no início do século XX como abrigo de uma tecelagem (dessas que a cidade tritura e depois finge que valoriza), os galpões queimaram, mas não ruíram. Foram reerguidos e logo usados pela Secretaria da Agricultura como posto de sementes – como se a cidade dissesse: “tá vendo, nem tudo é asfalto, tem futuro que nasce também do chão”.

E mesmo assim, continuaram sendo empilhados, repartidos, desmembrados. Engrossaram a fila dos espaços públicos sem função fixa, que sobrevivem à base de emendas e intenção boa.

Nos anos 80, a ameaça de uma nova demolição acendeu o grito abafado da vizinhança. Comerciantes, líderes comunitários, arquitetos e sonhadores formaram uma tal Comissão de Preservação. Queriam tombar, mas tombar no sentido contrário:

não deixar cair.

Queriam proteger os galpões da sanha imobiliária, da pressa estatal, do vazio funcional. Defendiam os muros não só pelo concreto, mas pelo suor de imigrantes, os fios de memória e as máquinas que embalaram gerações.

E foi assim, com o eco da comunidade e o peso da história, que o CONDEPHAAT entrou em cena para barrar a demolição. O tombamento veio, como se diz, por decreto.

E o espaço renasceu de novo – dessa vez, como ideia. Em 1986, o governo cedeu parte do prédio ao CNPq. Em 1987, o nome ganhou trilho e estação:

Estação Ciência
. Com logotipo assinado por Washington Olivetto, porque até os nomes precisam de publicidade pra não virarem pó.

Mas por que “estação”? Porque a cidade se movimenta. Porque a ciência é trânsito. Porque todo conhecimento embarca de algum lugar e, se tiver sorte, não para no ponto final. Porque tem trem ali perto, mas também porque tem tempo – passado, futuro e presente se cruzando nos mesmos vagões.

A Estação Ciência virou centro dinâmico, expositivo, lúdico. Abriu as portas pra crianças, professores, curiosos. Mais de 400 mil por ano atravessando aqueles galpões e esquecendo, por alguns minutos, que aquilo tudo um dia quase virou entulho.

Dentro deles, estagiários que explicam, experiências que brilham, e uma cidade que, por segundos, parece acreditar na beleza da dúvida.

Mas São Paulo é um rolo compressor de memória. Quando ela não some, é ignorada. Quando é lembrada, é com tom de cartilha. Por isso, vale insistir:

os galpões da Guaicurus não são só patrimônio. São testamento de uma cidade que já tentou ser fábrica, depois semente, depois ciência – e hoje tenta, quem sabe, não ser só sobrevivência.

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