Perepecias na Madrugada: Piorzinho, a Barra Funda e o Navio Negreiro de Concreto
Na solidão e veneno de uma noite paulistana, Piorzinho encontra a arte de Bruno Perê e embarca em uma viagem crítica pelas ruas da Barra Funda.
Era uma daquelas noites em São Paulo que já começam erradas. O transporte público, lotado como sempre, esmagava minha alma e meu corpo entre outros tantos.
O vagão do metrô parecia mais uma dessas latas de sardinha que a gente vê nos filmes de desastre — sem direito a resgate. Depois de um dia longo e um salário curto, tudo o que eu queria era chegar em casa, mas a vida, ah, a vida, ela adora uma piada de mau gosto.
O fedor de suor e o calor humano — no pior sentido possível — me cercavam.
Eu, Piorzinho, de pé, no veneno, também suando em bicas, com o corpo latejando da correria e a cabeça a mil. "Por que eu tô aqui?", eu pensava. "Por que todo dia é essa luta, essa maratona desgraçada pra voltar pra casa, só pra recomeçar amanhã? Não tem outro jeito?"
O metrô freou bruscamente. Mais um empurrão, mais uma série de xingamentos sufocados na garganta. Aquele vagão, que só existia pra esmagar corpos, de repente começou a parecer outra coisa.
Outra coisa que eu não conseguia identificar, mas que martelava na minha mente. "Todo vagão tem um pouco de navio negreiro." Essa frase não saia da minha cabeça, e eu nem sabia de onde tinha vindo.
Quando a porta se abriu...
não pensei duas vezes. Dei o fora, pulei do vagão e decidi caminhar pela cidade, pelo menos até o veneno baixar. Quem sabe eu conseguiria encontrar um pouco de paz na solidão das ruas, longe daquela massa sufocante.
A caminhada começou sem rumo, mas foi me levando. As luzes da cidade piscavam como em um delírio, o asfalto reverberava com os ecos dos carros e ônibus, e eu caminhava ligeiro, na malemolência da madrugada.
Cheguei à Barra Funda. De um lado, a cidade insone, implacável. Do outro, a cidade morta, vazia, com a alma empurrada pra baixo dos viadutos. E lá estava eu, só, mas não completamente sozinho. A cabeça ainda fervilhava com aquela frase, a mesma que vinha e voltava como um mantra.
Até que, de repente, no viaduto Antártica, um lambe-lambe cravado em uma pilastra me chamou atenção. Não era qualquer frase — era a frase.
TODO VAGÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO.
“TODO VAGÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO”
- Bruno Perê ( Perepecias Bruno Perê )
Local: pilastras do viaduto Antártica,
Barra Funda em São Paulo/SP
Parei. Fiquei ali encarando. A frase era acompanhada de uma gravura, uma planta de um navio negreiro, com os corpos enfileirados, apertados, sufocados. A analogia era perfeita, mas dolorida.
A obra era assinada por Bruno Perê, um nome que eu já tinha ouvido aqui e ali, mas nunca tinha dado muita bola. Naquela noite, porém, ele me prendeu ali, como se fosse uma âncora invisível.
Perê me cutucava – Lá ele. Ele trazia a verdade nua e crua.
A conexão entre o passado e o presente estava ali, escancarada. A maioria das pessoas que lota esses vagões — pobres, pretos, explorados — estavam apenas repetindo a velha história de opressão, só que agora em vagões modernos, nas entranhas da cidade. De repente, aquele vagão apertado e sufocante fazia ainda mais sentido. "Somos os novos escravizados", pensei.
Enquanto eu olhava para aquela pilastra, quase dava pra sentir o balanço do navio.
O metrô, o trem, o ônibus, todos eles são versões modernas desses navios negreiros, jogando a gente de um lado pro outro, sempre no limiar entre o esgotamento e a sobrevivência. Olhei ao redor, as luzes da cidade piscando como estrelas urbanas decadentes.
A vida de quem depende desse sistema é assim: você paga caro para ser tratado como gado, apertado entre outros corpos suados, sem espaço nem pra sonhar. O transporte é público, mas a dignidade parece ser privada.
A arte de Bruno Perê não estava ali à toa.
Ela gritava por justiça, por visibilidade. Eu me senti pequeno diante daquela verdade tão grande. As jornadas de junho ecoavam na minha memória, quando o povo foi às ruas, quando a conta não fechava — transporte caro, transporte precário.
"Não é só o preço da passagem que está errado", pensei. "É todo o sistema que trata a gente como mercadoria."
Caminhei mais um pouco ao redor do viaduto, tentando processar tudo aquilo.
Eu, Piorzinho, que comecei essa caminhada só pra fugir do sufoco, me vi mergulhado em uma jornada muito mais profunda. Aquela frase, aquela planta de navio, me jogaram de volta para um passado que eu queria acreditar que estava distante, mas que ainda vive aqui, nas ruas, nas estações, nos corpos que lotam os vagões.
Bruno Perê transformou aquela pilastra em um manifesto, e eu embarquei nessa viagem crítica sem nem perceber. Naquela madrugada, a cidade de São Paulo me parecia um grande campo de batalha.
O metrô? Um navio negreiro moderno, transportando trabalhadores exaustos em condições deploráveis, enquanto os "capitães do mato" contemporâneos — os patrões e o governo — lucram com o nosso suor. Eu, no meio disso tudo, só queria chegar em casa, mas acabei encontrando algo muito maior.
A obra de Perê não foi só um grafite jogado na cidade, foi um chamado.
Ela me lembrou que, mesmo no caos, na pressa, na rotina, precisamos parar, olhar e refletir. Não dá pra continuar aceitando essa exploração diária como se fosse normal.
E se a arte de rua serve pra algo, é justamente pra isso: cutucar, incomodar, despertar.
Enquanto caminhava de volta pra casa, mais lento agora, com o peso da consciência, uma coisa ficou clara. Eu não ia chegar só tarde em casa. Eu ia chegar mudado. Lenvataria muido no dia seguinte, mas estaria mudado.
Aquela noite, aquela frase, aquela obra me fizeram perceber que a viagem é muito maior do que simplesmente ir e vir. A luta, a resistência, estão em cada vagão, em cada esquina, em cada pilastra.
E cabe a cada um de nós decidir se vamos continuar sendo passageiros dessa exploração, ou se vamos, enfim, tomar o leme.
***
FONTE:
Inspirado em entrevista com o artista Bruno Perê, disponível no site "Ateliê Dois e Meio".
https://www.ateliedoisemeio.com.br/post/entrevista-com-bruno-per%C3%AA-d%C3%A9cimo-artista-do-dois-e-meio-convida
Bônus:
TODO VAGÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO
(Paródia inspirada em Bruno Perê)
Tudo começou quando a gente pegava
O trem lotado ali,
No meio da jornada,
O vagão apertava,
Gente pra todo lado,
Todo dia é isso,
A gente é empurrado.
Qual é, patrão? Qual é, patrão?
Que conta tá fechando?
Qual é, patrão? Qual é, patrão?
Até quando?
É mole de ver,
Em cada viagem,
O tempo passa mais lento pra quem tá na margem,
Quem segurava com força o chicote,
Agora empurra o povo pro vagão que explode,
Escolhe sempre o trabalhador
Pra viver esmagado, pra viver esmagado.
Todo vagão tem um pouco de navio negreiro,
Todo vagão tem um pouco de navio negreiro.
É fácil de ver,
Que no transporte,
A história se repete de forma mais forte,
O povo preto, o pobre explorado,
Carrega a cidade, mas sempre é deixado,
Comparado, comparado
Ao que fazem com a gente,
Todo dia atropelado,
Comparado, comparado
À história que insistem
Em manter apagada.
Todo vagão tem um pouco de navio negreiro,
Todo vagão tem um pouco de navio negreiro.
***
Essa paródia adapta o tema da obra de Bruno Perê, "Todo Vagão Tem um Pouco de Navio Negreiro", para a música original do O Rappa, refletindo a opressão e as condições desumanas enfrentadas pelos trabalhadores nos transportes públicos.
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